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abril

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2025

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Um amor que veio do mar

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Precisava retornar para os seus. Para o seu trabalho. Para a sua vida

Rômulo, um artista plástico, vivia em uma grande cidade à beira-mar. Ao sentir que precisava de outros ares, outras paisagens e outros céus para colocar em suas telas partiu em busca do desconhecido. Que encontrou em uma deserta praia distante que ficava bem mais além dos últimos rochedos conhecidos.

Lá encontrou uma cabana que algum pescador há muito abandonara. Fez alguns arranjos. De muito não precisava. O atelier a um lado. Do outro, um quarto e uma cozinha. Na varanda, uma rede.

A menos de um quilômetro, um pequeno armazém provido de tudo. Até de internet. Onde fazia as suas refeições. Motivo para as suas caminhadas diárias.

Certa manhã, sem inspiração para dar início a outro quadro, largou telas, tintas e pincéis e saiu a caminhar em direção oposta.

Com os pés um pouco em meio às águas da beira, um pouco a afundá-los nas areias ruminava seus pensamentos quando, ao alongar a vista teve a impressão de ver um corpo entre a areia e as ondas do mar.

Uma linda jovem, longos cabelos a emoldurar um corpo digno de uma tela dourada. Chegou mais perto. Percebeu que, embora com dificuldade, respirava. Com pouco esforço levou-a até onde as águas do mar não chegavam. Não parecia ter se afogado. Respirava em haustos profundos, como se dominada por um cansaço extremo. Seu corpo estava gelado. Deixou-a ao sol. Precisava aquecê-la. Com a camisa que levava nas mãos cobriu-a.

Não era um homem franzino, mas não se sentia em condições de carregá-la em seus braços até o armazém.  Resolveu sentar-se ao lado e aguardar. Levava consigo uma garrafinha com água que passou a pingar, pausadamente, nos lábios da moça. Não demorou muito para que ela, assustada, abrisse os olhos. Notou um esboço de sorriso.

Não passara meia hora ainda a garota sentou-se. Olhava ao redor como se tentasse saber por onde andava.

Rômulo levava sempre frutas secas que ia roendo enquanto caminhava. Ofereceu-lhe. Ela agradeceu. Tentou comer. Engasgou-se. Não conseguiu.

Mais de uma hora depois balbuciou algo. Sua voz não saía. Sentou-se. Tomava água em pequenos goles. Tentou ficar em pé. Não foi capaz de firmar os pés no chão. Estafa muscular.

Rômulo decidiu conversar com ela e notou que era entendido. Na mata ao lado ela viu bananeiras. Apontou para elas e para suas pernas. Seus músculos encontravam-se em constantes contrações. Doloridas câimbras. A muito custo engoliu a preciosa fruta. Algum tempo depois já conseguia levantar-se. Vagarosamente deu alguns passos. E assim, apoiada no braço de Rômulo e em um galho seco de árvore que a maré jogara na praia, chegaram na cabana quando os últimos raios do sol se estendiam sobre o mar.

Rômulo acomodou-a em sua cama. Cobriu-a com uma manta e foi até o armazém.

— Um caldo de peixe quente com farinha de mandioca recuperará suas forças.

Ela sorriu. Dentes alvos à mostra.

No dia seguinte já se sentia melhor. Conseguia falar.

— Você deve ser uma sereia que perdeu a cauda e veio bater em nossas plagas. — Falou Rômulo, rindo.

Em poucos dias Eleonora estava recuperada. Em conta-gotas contava como chegou até ao local onde ele a encontrou.

“Consegui alcançar esta praia porque sou campeã de natação de longa distância no mar.

Como continuei a nadar em todos os dias de minha vida, não perdi o pique. Mas além de nadadora sou também modelo. E foi esta a razão de eu estar naquele maldito barco no momento em que ele afundou.”

Rômulo nada perguntava. Deixava que ela falasse o que quisesse e do que se lembrasse enquanto colocava aquela beldade em uma tela.

Certa manhã, ao olhar para o mar, ela viu um pequeno veleiro. Começou a chorar. Precisava retornar para os seus. Para o seu trabalho. Para a sua vida. Mas nem sabia como começar. Precisava contar a ele como caíra na promessa de receber um vultoso cachê para desfilar para os milionários e suas esposas naquela luxuosa embarcação.

“Sabe, meu amigo, era para ser apenas um desfile de modas em alto mar. Teríamos as nossas cabines e tudo que precisássemos. Éramos seis moças contratadas. Na primeira noite foi realmente um desfile de modas. Mas não havia madames a bordo. Os magnatas estavam acompanhados de garotas de programa. Como faltaram algumas vieram atrás de nós. Era um verdadeiro bacanal e nele entramos como um animal que cai em uma arapuca.

E foi no instante em que eu estava trocando de roupa no camarim, no instante em que joguei aquela indumentária toda com a qual havia desfilado que ouvi o estrondo e fui jogada contra a parede oposta. Gritos, sirenes, apitos e um turbilhão de água salgada a inundar todos os compartimentos.

Dizia-se que era o maior iate do mundo. Um altíssimo mastro de alumínio. Com os mais modernos equipamentos de segurança.

E bastou uma intempérie descomunal, jamais prevista, para fazê-lo emborcar e afundar.

Assim como estava, sem roupa alguma sobre o corpo, atirei-me ao mar. Nadei contra o furor das ondas, contra o implacável vento como nunca antes havia nadado.

Desde que comecei meus treinos no mar grosso carrego comigo esta pequena bússola presa nesta fina corrente. Foi a minha salvação. Guiada por ela segui a direção de terra firme.

Se eu tivesse que nadar mais uma hora eu não sobreviveria. O dia estava nascendo quando o mar me jogou para a praia. E algumas horas depois você me viu.

O que eu preciso agora é encontrar forças dentro de meu eu para retornar aos meus. Será que alguém acreditará em mim? Eu não entrei naquele iate como uma garota de programa. Eu sou modelo profissional.

Gostaria de saber se minhas colegas se salvaram. Tanta coisa eu gostaria de saber”.

— Eleonora, no armazém nós ficamos sabendo de tudo o que se passa no mundo. A notícia do naufrágio daquele iate de luxo era notícia diária. O único sobrevivente é um grumete que pouco ou nada sabe contar. O teu nome está entre os mortos e desaparecidos no fundo do mar. As equipes especializadas de mergulhadores ainda continuam em busca de corpos.

A moça quase teve uma síncope.

— O que você acha de ficar por aqui? Com outro nome. Que tal treinar as crianças e adolescentes da vila que fica próxima ao armazém, para serem futuros campeões de natação de longa distância no mar grosso?

— Eu até poderei voltar para cá e fazer exatamente isto. Mas meus pais sabem que eu sobrevivi. Eles me conhecem. E conhecem a minha capacidade de sobrevivência nadando nos mares mais impetuosos. Irei para os meus e se você me aceitar, voltarei para ficar.

Foi então que se abraçaram e o primeiro beijo selou para toda a vida um amor que veio do mar.