João Estácio Alves foi sepultado na semana passada
João Estácio Alves, que morreu aos 97 anos anos no sábado, 12, na sua terra natal, Canoinhas, não viveu durante a Guerra do Contestado, mas sabia detalhes impressionantes sobre o sangrento episódio que demarcou os atuais territórios catarinense e paranaense. A memória infalível de João impressionava e foi tema de uma reportagem publicada no jornal Correio do Norte em 2006. O texto é reproduzido na íntegra abaixo. Acompanhe:
João Alves lembra de nomes e datas com uma facilidade incrível, como se eventos ocorridos há mais de 50 anos tivessem acontecidos ontem. As muitas histórias que João guarda na cabeça não servem de material apenas para uma reportagem e sim para um livro. “Cheguei a começar a colocar tudo isso no papel”, confidencia. O livro que se ensaia ainda não saiu do papel, mas quando sair pode nos ajudar a compreender fatos tão complexos quanto curiosos da história da região.
OURO VERDE
João nasceu na localidade da Fartura, em 1928. Seus pais haviam vindo do Paraná há dez anos. “Eles vieram a cavalo do Paraná para cá. Para carregar as bagagens, usaram seis mulas de carga”, recorda. Porfírio e Idalina chegaram por essas terras em 1917 com uma filha de três meses nos braços. João conta que o pai não dormia à noite. “Os índios rondavam o rancho querendo a menina”. Nas terras onde se instalaram, Porfírio, a exemplo de boa parte da população da Fartura, começou a cultivar erva-mate. “Um vapor (trem) vindo de Rio Negro, carregava a erva-mate beneficiada e a levava para Joinville, Abdon Batista e outras cidades”. Abdon Batista, afirma João, era o maior comprador de erva-mate produzida na região.
A erva-mate era abundante e facilmente beneficiada. “Quando a erva estava seca, limpava-se o chão, batia-se a terra com muita força, jogava-se a erva no chão e a triturava com ajuda de um facão”, explica João se referindo ao modo rústico de se beneficiar a erva-mate, comum na época.
CONTESTADO

João lembra que o pai lhe contava que as marcas da Guerra do Contestado na localidade estavam por todas as partes.
Não foram poucas as vezes que João, ainda criança, parou para ouvir as histórias que o vizinho, Manoel Teodoro de Souza, contava ao pai em longas conversas regadas a chimarrão. Manoel, segundo João, havia sido um dos voluntários do Governo na luta contra os revoltos jagunços. Entre as muitas histórias de Manoel, João recorda que entre os jagunços, um moço conhecido como Pitiguara era o mais temido. João conta que pesquisou para confirmar o que Manoel contava e descobriu que Pitiguara é a alcunha de Tertuliano de Albuquerque, capitão do Exército que insurgiu contra o Governo.
“Os fanáticos (jagunços) eram capazes de arrancar uma criança dos braços da mãe, jogá-las ao alto e recebê-las na ponta do facão. Às mulheres, o mais comum que acontecia, era cortar-lhes os seios”, recorda entre os mais impressionantes relatos ouvidos de Manoel.
O fim da insurreição veio com a fome. “Os jagunços não tinham o que comer, então comiam couro cru. Cintos, cangaias, chegavam até a matar cachorros para comer a carne. Eles chegavam em casas onde os donos já haviam fugido e comiam o pouco que viam pela frente”. Além disso, outro alimento ingerido pelos jagunços era o carvão. “Eles queimavam tocos de árvores e comiam o carvão”. O resultado dessa comilança foram prisões de ventre homéricas que levaram muitos jagunços à morte até a rendição de toda a tropa.
VIDA NO INTERIOR
João recorda que a vida no interior era muito diferente. “Nós éramos uma rapaziada que não sentia nem o cheiro do álcool. Pinga era só para remédio”. Não haviam brigas também, mesmo levando-se em consideração que era comum encontrar jovens com facas e pistolas na cintura. Quando haviam bailes, essas armas eram deixadas na portaria do clube e recebidas ao final do baile.
Para vir da Fartura para o centro de Canoinhas, o único meio de transporte eram as carroças. Porfírio era um dos poucos privilegiados da Fartura a ter uma carroça. “Lembro que ele vinha para a cidade vender erva-mate para o Samuel Medeiros, que tinha uma casa de comércio onde hoje fica a Alfaiataria Gaúcha. Meu pai trocava erva-mate por produtos alimentícios”. Porfírio vinha para a vila (como era conhecida Canoinhas) com diversas encomendas dos vizinhos. Fartura não tinha nem uma bodega e a única alternativa comercial era a ‘vila’. Mas nem só para transportar produtos servia a carroça de Porfírio. “Certa vez meu pai trouxe para Canoinhas uma criança quase morta para consultar um médico, outra vez trouxe Paulino Martins, vizinho que sofria de tuberculose”, recorda.
VIDA NA CIDADE
João recorda que entre os comerciantes canoinhenses, João Abrahão Seleme se destacava. “Meu pai vendia chifre de boi para ele, que mandava os chifres para São Paulo para serem transformados em pentes”.
João veio para a cidade em 1974, depois de casado com a professora Adelaide com quem teve quatro filhos.
Entre os primeiros sinais de evolução da cidade, João assinala o surgimento da Rádio Canoinhas, que funcionava na casa de Virgílio Trevisani. “Lembro que em 1954, 1955, eu não sabia o que era rádio. Fui conhecer e fiquei encantado com a apresentação de duas duplas de cantores”, conta João.
O primeiro rádio que João e Adelaide conseguiram comprar, um luxo para a época, era a sensação da casa. “Como funcionava à bateria, ficávamos desapontados quando a bateria acabava”, recorda. Os primeiros proprietários de rádio na cidade, conta João, foram Otto Friedrich e Max Olsen.
OUTRAS MEMÓRIAS
Nessa altura da conversa, Adelaide nos revela origem tão interessante quanto à de João. Nascida na localidade de Matão, onde o pai tinha a única fábrica de farinha de mandioca da localidade, Adelaide veio para a Fartura em 1946, para lecionar na Escola Reunidas São Roque da Fartura.
Entre os muitos fatos interessantes que rondam a trajetória da família de Adelaide, um se destaca. Adelaide garante que seu bisavô, Antonio de Matos, morto aos 105 anos, foi um dos construtores da canoa encontrada por moradores da localidade de Boa Vista, em 1979.
Histórias que fascinam e encantam, vindas de um passado por vezes nebuloso, mas que contadas de um modo despretensioso e por isso mesmo fascinante, tornam-se importantes dados a serem eternizados nos anais da história.