sábado, 19

de

abril

de

2025

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E o vermelho do sangue no cáqui da farda…

Imagem:Pixabay

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Foi um sol de meio-dia que o encontrou na estrada de névoa poeirenta

Na névoa empoeirada da estrada seguia, cambaleante, um quase menino. Sim, um quase menino, de altaneiro semblante, com trôpego andar e nos olhos o brilho mais puro dos que conduzem bem dentro de si a certeza mais nobre de um ideal a cumprir.

Era um quase imberbe menino de olhos azuis. Com tênue penugem cobrindo sua face macia. Anônima figura  ao longo da estrada empoeirada, parecia uma estátua de barro movente, a confundir a cor de sua roupa com a da terra onde andava.

Um quase imberbe menino, mãos crispadas, tentando, num último esforço, manter seu fuzil apertado a um corpo que já não mais obedecia às manobras comandadas por sua mente.

Névoa e poeira, confusas, foram aumentando, aumentando…  e cada vez mais longe lhe parecia a terra… terra pegajosa, barro avermelhado em mistura à ferrugem que crescia… crescia… como lago de fogo ao redor de suas botas.

Suor escorrendo, escorrendo, colando a farda em seu corpo, suor avermelhado, frio e pegajoso suor colorido no cáqui da roupa, suor dolorido a aumentar mais e mais o tétrico lago a seus pés…

E aquela dor, antes tão lancinante em seu peito, aos poucos ia sumindo, sumindo, apagando…

E as névoas lhe vinham à mente, fragmentos esparsos do turbilhão momentâneo quebrando a calma daquela manhã. Primeiro um barulho infernal como se milhões de demônios fizessem desabar todos os trovões sobre a terra… as imagens indo e vindo, perdendo-se, confundindo-se na poeira da estrada, na névoa da estrada… na névoa empoeirada de sua mente confusa…

Depois o soco imenso queimando as entranhas, rasgando um túnel de fogo em sua carne. Vaga lembrança de um sol nascendo atrás de altivas palmeiras a farfalhar ao vento macio daquela manhã, de passarinhos saudando um amanhecer tão lindo.

E então o estrondo, o fogaréu, a queda num solo macio que lhe parecia o decantado veludo dos contos de fada. Deitado no estofo relvado sentiu uma imensa vontade de assim ficar pela vida afora.

Mas do fundo de seu eu arrebentado soou uma voz  a clamar bem alto. Missão a cumprir. Planos e mapas a entregar. Companheiros na mata em inacessíveis locais que morreriam à míngua se o socorro que estaria indo buscar não chegasse a tempo…

Somente ele havia encontrado o caminho. Os demais colegas da busca haviam seguido em outras direções. E os companheiros famintos e exangues e endoidecidos jamais seriam encontrados. Ninguém mais os acharia.

Tropegamente arrastou-se entre touceiras e arbustos, espinhos e farpas, sentindo a mais lancinante das dores a corroer-lhe as entranhas. Com tufos de pano, rasgados de sua camisa, foi bloqueando o caminho incessante que o sangue teimoso insistia em fazer.

Seu fuzil era a bengala, a muleta, o desbastador dos incertos caminhos, única pista visível ao remoto e quase incerto e imprevisível socorro. Sequer fazia ideia de onde vieram os tiros. Fora realmente insensato ao se deixar pegar assim tão de surpresa, quando já se encontrava a tão poucos quilômetros do ponto do encontro marcado na estrada. Fora tão longo o tempo que estivera deitado na relva macia, semi enterrado dentro dela, que, com certeza os bandidos julgaram-no morto. Olhou seu fuzil e percebeu que havia cartuchos deflagrados… então, também atirara… não tinha lembrança. Somente não percebia ruídos humanos por perto. É possível que os marginais julgassem haver atraído com o tiroteio os demais policiais encarregados da busca infiltrando-se pelos esconderijos dos grotões da serra.

Foi um sol de meio-dia que o encontrou na estrada de névoa poeirenta. Enorme era o sol e tanta era a névoa, tanta névoa… Era um sol de sangue. Era um sol tão forte que o cegava… mas é claro… claro que era a intensidade do sol… Eram muitos os sóis, verdes sóis, amarelos sóis, sóis azuis e brancos. Eram sóis de ouro a desenhar-lhe a sua bandeira… eram sóis de ouro na imensa névoa empoeirada e o imenso lago de ferrugem aumentando … aumentando… aumentando…

Lembrou-se então daquela dor em seu peito… já não mais a sentia…  E a sua fada de profundos olhos escuros e longos e negros e sedosos cabelos inundou sua memória… e sorriu ao lembrar-se desse amor tão intenso que por ela sentia… lembrar-se dos sonhos… dos seus beijos, do seu carinho…  ela iria orgulhar-se dele.

Sua face estava já coberta pela aura dos iluminados. Sequer conseguira chegar perto da meta proposta, do ponto marcado na estrada… Amargurado, num solitário final, conseguiu, em instantes de retorno à consciência, traçar na poeira da estrada, num desenho que lhe parecia por demais medíocre, um arremedo de mapa, onde tentava, em esforço supremo, indicar o local dos amigos perdidos.

Era já o início de meridiano crepúsculo, de longas sombras esticadas na estrada, quando sua farda da cor da poeira foi vista como ilha em um lago vermelho.

E vistos foram também os riscos que fez nessa lúgubre poeira. Riscos que o vento não apagou. Riscos que as águas não diluíram. Traçados vermelhos e grossos riscados no solo. Grossos como a ponta de seu dedo indicador titubeante, grossos como  a ponta de seu indicador vacilante que jazia enterrado em poça de sangue já seco.

Fotografaram o fantástico desenho geográfico. Ampliaram o fantástico desenho geográfico. E seguiram sua rota. E partiram pela avermelhada pista que ele havia percorrido. Partiram com todo o aparato indispensável de busca e salvamento e antes que a lua como côncava canoa sumisse horizonte abaixo, seus companheiros se encontravam em um hospital, aquecidos e confortáveis, cercados de sorridentes anjos brancos terrenos que lhes pensavam as feridas, tranquilizavam as mentes confusas no torpor mais incrível daquele longo tempo em que perdidos ficaram no emaranhado das matas da quase inacessível serra.

E o corpo do quase imberbe menino de olhos azuis, suave rosto coberto de fina penugem, branco e alvo rosto, foi, solenemente carregado dentro de sua farda da cor da poeira da estrada.

E a poeira foi se apagando, apagando, orvalhada pelas lágrimas incontidas dos companheiros, dos amigos, dos anjos.

E um suave ribombar ecoou por pradarias e montanhas, naquela salva de vinte e um tiros. Foi a única homenagem que a sua terra lhe fez.

Os passarinhos fizeram a última serenata vespertina e acompanharam seu sorriso de luz, seu altaneiro semblante e o puro brilhar de seus olhos azuis até as fronteiras das últimas nuvens. E ali o entregaram ao séquito de anjos que por ele aguardava. Com vestes que o arco-íris colorira, abriam suas asas como em solene continência celeste. No toque de alvorada cobriram-no com as pétalas de vinte e uma rosas e foi a primeira homenagem que o paraíso lhe fez.