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Dança oriental árabe: algumas angústias, percepções e possibilidades

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A Dança Oriental Árabe pertence à uma tradição, à um contexto cultural

Msª Salimi Mehanna[1]

Drª Graciela Marcia Fochi[2]

Eu sou a bailarina Salimi Mehanna, minha ancestralidade e descendência é árabe e, logo, possuo uma relação profunda com a dança. Isso se deve ao fato de que incluímos a dança e a música – como celebração da vida -, organicamente na rotina da vida cotidiana.  Foi inevitável, logo me tornei bailarina e professora… e já se passaram mais de trinta anos e, ao longo dessa jornada, tive a oportunidade de estudar com professoras bailarinas árabes muito renomadas e das mais diversas categorias.

Somos um povo muito unido e orgulhoso pelo fato de carregar o sangue árabe, e mediante os impactos da globalização, em especial no que tange a arte da dança, passaram a me ocorrer inúmeras dúvidas e incertezas em relação a verdadeira, a coerente forma da praticar esta arte.

A partir deste processo, tem sido recorrente nos perguntarmos sobre: – Como a Rak´s el Shark -forma como é denominada arte da dança e que na tradução literal para a língua portuguesa é Dança Oriental Árabe-, está sendo apropriada e representada atualmente nos diferentes locais do mundo?! -Houve alterações no que diz respeito à sua constituição, ao sentido e no caráter festivo como eu a conheci?!  

A partir da abertura e da mundialização dos mercados, acrescida pela proliferação dos recursos de produção de conteúdo por meio de aplicativos e mídias virtuais, que possibilitou ampla divulgação da produção artística de inúmeras bailarinas e das mais diferentes nacionalidades. Fruto disto está que, hoje é possível encontrar bailarinas do mundo inteiro dançando nos palcos das cidades do Egito, dos Emirados Árabes e outras partes do mundo. Tem sido possível observar ainda que muitas bailarinas possuem uma trajetória que muito se aproxima às versões mais clássicas da dança, outras que renovaram e recriaram amplamente a forma da arte e expressão da dança.

 Diante deste contexto, que tem sido caracterizado por continuidades e mudanças, cabe apresentar o exemplo da reconhecida bailarina egípcia Monah el Said (1954- ), que foi e é aclamada por inspirar bailarinas a enfatizar a expressividade e as emoções por meio da dança. Porém, ocorreu que, ainda num momento alto da sua carreira – muito solicitada aclamada nos palcos do Líbano e do mundo árabe – e ainda jovem, ao ver a dança se tornar uma mera atração sensacionalista para turistas ocidentais, repentinamente deixou de se apresentar publicamente, passando a se dedicar apenas à treinos de outras bailarinas e a ministrar workshops e palestras nas mais diferentes partes do mundo.

Outro aspecto também está, que em nossa época muito se fala na dança do Tarab, que foi motivo e tema de filme dirigido pela cineasta Jennifer Hanley, no ano de 2019. Imagino que você esteja se perguntando; – Mas o que é o Tarab, o que é essa nomenclatura?! Ocorre que, na verdade, não existe uma tradução apropriada para o português, mas a mesma possui uma relação muito próxima entre a música e a dança árabe, e que pode ser apreendida como que quando se almeja um certo estado de êxtase, arrebatamento, suspensão e de relaxamento de corpo e espírito.

Dito de outro modo, é algo próximo de que como se mobiliza os sentidos para sentir e experimentar as emoções, uma densa carga emocional que é alinhada e inserida nas previsões técnicas de movimentos e que a bailarina expressa e entrega por meio da dança ao público.  

No entanto não é possível esquecer que a Dança Oriental Árabe é oriunda dos países orientais árabes, que está aquém de constituir um ato de mero exibicionismo de passos e corpos exorbitantes, cirúrgica e siliconadamente modelados. Outro aspecto que também requer atenção é o da realização de grandes festivais, nas mais diferentes partes do mundo, com caráter meramente competitivo, atribuindo à dança árabe oriental um viés mais desportivo.

A Dança Oriental Árabe pertence à uma tradição, à um contexto cultural, faz parte da estrutura cultural de grupos étnicos que possuem raízes sólidas e que em meio às vertigens contemporâneas requer zelo e salvaguardo e, para tal é necessário que ainda mais se estude, problematize, pesquisa e reflita sobre ela. Cabe ressaltar ainda que se trata de expressões que fazem parte de uma herança cultural que está sustentada fundamentalmente na memória e na oralidade das pessoas praticantes, o que por sua vez lhe confere um caráter peculiar em termos de acesso e abordagem em termos de fontes à pesquisa e produção como conhecimento científico.

   Ademais, preciso dizer ainda que minhas bailarinas favoritas nunca competiram em festivais, apenas dançavam para si e almejavam entregar ao público, por meio de movimentos, a sua interpretação e emoção para uma determinada musicalidade. 

*** 

Já eu, sou a bailarina Grazzia Anoush, até onde pude saber não tenho vínculos sanguíneos diretos com os povos orientais árabes e, meio que sem perceber, por meio da influência de pessoas próximas que já praticavam a dança, fui sendo, gradualmente, arrebatada pela Dança Oriental Árabe. Tal acontecimento foi irreversível e com o passar do tempo se revelou em uma necessidade primordial. Acredito, não tenho certeza, que eu tenha iniciado os estudos e dados os primeiros passos por volta do ano de 2010. De lá para cá precisei interromper e retornar à dança por diversas vezes e por diferentes motivos.

Precisei interromper por incompatibilidade entre os horários das aulas e minha disponibilidade de tempo livre; por motivo de mudança de cidade, no caso, para onde não havia professora que ministrasse aulas; por questões de renda/salário suficientes que cobrissem as despesas das aulas e das apresentações; e a situação que me ocorreu mais recente foi a de precisar priorizar a continuidade dos estudos.

Em contrapartida, senti necessidade de voltar por outros tantos motivos também, como por exemplo, em meio ao término de um relacionamento, na superação de uma experiência de abuso psicológico e de violência doméstica e, mais recentemente, diante da necessidade de ter acesso a vivências individuais e coletivas com a arte e cultura oriental árabe de maneira ampla.

Mas digamos assim que, estes ainda seriam os motivos secundários, isso tudo ainda não explica de forma apropriada a paixão e devoção que desenvolvi em relação à dança oriental árabe.

Que não deixam de ser também pelos figurinos com tecidos esvoaçantes, bordados em pedrarias e que formam padrões geométricos florais e em arabescos. Pelos acessórios vibrantes como bastões, espadas, punhais, pandeiros, snujs, incensos, véus, chadors, candelabros, taças entre outros…

Pela maquiagem densa e marcante na região dos olhos, que ressalta o olhar, que por sua vez sugere o mistério e o sagrado. Dos gestos e trejeitos envolventes e surpreendentes, ora suaves, tenros, chorosos, outros tensos, contundentes e fortes, ou seja, intensos e pulsantes.

Pelo corpo que ondula, gira, contorce, serpenteia, treme e dobra no ritmo de um derbake percutido. Pela musicalidade que é marcada por uma sonoridade e que é obtida na execução de instrumentos peculiares em escala harmônica dupla, que proporcionam uma experiência auditiva simétrica potente e radical.

Pela atividade que, se realizada de forma regular e atenta, proporciona alinhamento e solidez da postura, alongamento e fortalecimento muscular, harmonização da silhueta entre outros benefícios físicos.

Bom, a partir deste momento, as bailarinas Salimi e Gazzia se coadunam nos termos de que a paixão e a devoção que ambas declaram à Dança Oriental Árabe está muito além de tudo isso, e nem pensar na curiosidade bisbilhoteira e exotista por exemplares e expressões culturais que estão além da fração ocidental do globo terrestre, assim como dos fetiches vulgares que transformam corpos, dança e arte, em mercadoria, entre outros usos e abusos mais.

Ou, diante da dinâmica perplexa em termos acréscimos, ganhos, perdas e danos que ocorreram e ocorrem em meio ao processo de mundialização/comercialização da arte e da dança, em especial os praticados pela indústria do entretenimento, que em muito tem sido responsável por desreferenciar e fragilizar aspectos que estavam latentes e salvaguardados contextualmente no seio da tradição e sob os cuidados dos detentores desta herança cultural.

Então o que seria?! Resumo da Ópera: entendemos que se trata de uma experiência que se inscreve em um espiral de possibilidades, que serve à resistência, à resiliência, ao reencantamento em meio à contextos de baixa autoestima, opressões, rejeições, abandonos, sedentarismos, solidões, desesperanças, sofrimentos psíquicos e emocionais entre outros tantos males que ainda nem nomeados foram. Assim como é possível se servir daquilo que se necessita à regeneração, ao empoderamento e a reedificação. Na Dança Oriental Árabe existe ainda a possibilidade de transcender as limitações da capacidade da expressão humana em transformar, comover, unir, alegrar, confraternizar, divertir e brilhar.

Uma arte que proporciona que cada pessoa se sinta única, mesmo por meio de uma dança que é oriunda de contexto com inúmeras particularidades históricas, religiosas e culturais, todavia, que não se restringe à uma herança estática e congelada num passado distante e idealizado, outro sim, que se insere numa dimensão global e universal da experiência e busca pela realização humana.

Sobressai ainda que se trata de uma arte, uma expressão que nasceu com as mais antigas civilizações, que é milenar, de profunda relação com o sagrado, com a natureza, com a terra e com o sangue, que ao longo das sucessivas gerações, milhares dançaram, e sem sombra de dúvida, milhares outras ainda dançarão…


[1]Mestre em Educação/Unioeste, pós-graduada em Dança e Cultura/FGG e graduada em História/Unicesumar. E-mail de contato: [email protected]

[2] Doutora em História/UFSC, mestre em Patrimônio Cultural e Sociedade/Univille e graduada em História/UPF. E-mail de contato: [email protected]