Cidade foi forjada no sangue dos revoltosos da Guerra do Contestado
COLUNA DE DOMINGO “Tá vendo isso aqui? Tudo era do meu avô”, me disse certa vez um senhor octogenário, muito respeitado na cidade, ao apontar o distrito do São Cristóvão inteiro, antigamente conhecida como Xarqueada. Ouvi repetidas vezes esse tipo de fala quando entrevistei mais de 80 idosos para contar a história de Canoinhas. A série Nosso Povo, Nossa História virou suplemento do jornal Correio do Norte no início dos anos 2000.
Em 2024, completa-se 200 anos do início da imigração alemã para o Brasil. Os alemães, assim como os poloneses e ucranianos, chegaram em Canoinhas mais tarde, no início do século 20. Vieram no encalço da Lumber e da oportunidade criada pela tentativa de branqueamento da população sulista feita pelo governo de turno. As terras eram doadas, em pequenas glebas. Houve quem expandisse seu território com o suor do seu trabalho e houve, claro, quem grilasse as terras (falsos documentos de posse que eram deixadas em uma caixa com uma porção de grilos. A fome dos insetos dava o aspecto de envelhecimento necessário ao papel). Quando os primeiros cartórios foram criados na cidade, lá estavam os senhorzinhos com seus “documentos” em mãos. Quem chegou depois, nesse caso, o cartório, que engolisse. Dessa forma, o bairro Jardim Esperança inteiro tinha um só dono, pra se ter uma ideia da prosperidade dos migrantes.
Quando a imigração foi estimulada e propagandeada na Europa e nas colônias gaúchas que já existiam por aqui há pelo menos 50 anos, já havia moradores na região de Canoinhas. Eram os nativos indígenas. Foram exterminados e hoje não se vê nem sinais deles em mais uma evidente prova da trágica memória canoinhense. Os caboclos (o que resultaria da mistura racial entre brancos e índios) ainda resistem e só eles sabem contar com fidedignidade o que ouviram de pais e avós. A sanha dos vaqueiros (mercenários assassinos) e das tropas do Governo que, durante a Guerra do Contestado, tinham licença para matar, não tinha limites. E isso ocorria de todas as maneiras. Estima-se que entre 10 mil e 20 mil pessoas foram assassinadas na região de Canoinhas durante a Guerra. Eram mortes muito cruéis, que também eram replicadas do lado das vítimas que apenas estavam defendendo seu patrimônio. Ao reagirem, sem as armas, digamos, convencionais, das tropas do governo e dos vaqueiros, usavam de toda sorte de objetos cortantes, valendo desde foices até facões e machados. As descrições dos assassinatos são terríveis. “Jogaram uma criança para o alto e receberam na ponta de um facão”, contou João da Silva, um dos meus entrevistados.
Se nos falta culto a memória, a história insiste em lembrar nossas raízes de vez em quando. Senão, vejam este mês de agosto. Foi um mês de crimes impressionantes: mãe e filho entram na casa da mãe dela e espancam a idosa e seu companheiro com uma barra de ferro. Corta para o fim do mês e três adolescentes matam um taxista com pelo menos oito facadas. Certa vez questionei o historiador Fernando Tokarski sobre porque os homicídios são tão violentos em Canoinhas e região e ele me respondeu: “Creio que tenha a ver com a Guerra do Contestado”.
Comecei falando de imigração e concluo falando de eleições. A criminalidade também suscita a criação de políticas públicas. Penso que a Guerra do Contestado deveria ser disciplina no currículo do ensino fundamental. Nossas crianças precisam conhecer e entender a história de seus antepassados. O sofrimento, a violência e a injustiça do passado refletem, sim, na vida desses meninos e meninas. É impressionante como temos vocação a apagar o passado, mas vez ou outra ele insiste em dar sinais que nos assombram.