Desenterrou-os do pequeno baú em que por anos esquecidos ficaram. Renasceu
Um dia cinzento como sua alma naquela tarde vazia. Vazia como há muito não sentia. Nem a taça do gelado espumante que sorvia, lentamente, nem o som do amado concerto de Rachmaninoff conseguiam levar para longe a angústia que envolvia todo o seu eu.
Sentou-se na escada circular que dava para o jardim. O jardim que por alguns dias estivera pleno com o riso dos seus. Fora linda aquela semana. Não apenas enquanto a família ali estivera reunida. Já nos dias que antecederam os dias santificados o bulício já era grande. Preparar a casa para recebê-los. Enfeitar o jardim. Esmerara-se no cardápio escolhendo os pratos que eles mais apreciavam.
E agora o vazio. Lembrava-se do tempo em que seu deambular não era claudicante, em que seus cabelos não eram prateados.
O nevoeiro cobria o entorno. Gotículas acumulavam-se sobre as pétalas das flores, sobre as folhas da pequena palmeira que à sua frente farfalhava.
Pensamentos a voar para os tempos em que engavetava seus poemas rabiscados. Sorriu. Desenterrou-os do pequeno baú em que por anos esquecidos ficaram. Renasceu. E sentiu dentro de si que apenas o seu físico já desgastado mostrava a passagem do tempo.
Papéis amarelecidos. Alguns rabiscados com a velha canetinha preta de ponta fina. Outros escritos na sua pequena Olivetti, velha companheira de tantos relatórios, prontuários, receias, fichários, contos, poemas…
O sol já se despedia atrás de grossas e negras nuvens. Sentiu a umidade e o frio a enregelar suas pernas.
Entrou na sala. Acomodou-se em sua poltrona predileta. Tornou a encher a taça com o gelado espumante italiano. Afundou em meio aos seus amados papéis.
Dentro de si sentiu o que escrevera como se agora, passados tantos anos, estivesse a jogar aquelas mesmas palavras no papel.
Esta coluna chegou
com as chuvas da primavera.
Chegou como a chuva de primavera.
Esta coluna chegou
com as flores em botão na primavera,
como as flores em botão na primavera.
Chegou com o verde
atapetando a praça,
como o verde atapetando o campo,
enrodilhando o muro,
alinhavando a cerca.
Esta coluna chegou
com a lua refletida na poça da calçada
para mostrá-la
aos que andam com os olhos no chão
para mostrar
como é bela a poça da calçada
quando nela existe o brilho de uma lua.
Esta coluna chegou
no vendaval que derrubou o meu pinheiro…
Esta coluna chegou
no vendaval que estraçalhou meu cedro…
Esta coluna chegou
para deixar no ar
o inebriante aroma da floresta
na imensidão da escura e silenciosa noite.
Esta coluna chegou
no vendaval que arrancou
a macieira predileta…
Para mostrar que mesmo caída ao chão,
raízes apontando ao céu,
consegue de flores cobrir-se…
para mostrar que mesmo assim vergada,
estará de frutos coberta na próxima estação.
Escrito em 1975
E outros pedaços mais que de sua alma extravasa e jogava sobre as folhas de papel:
Este amarelo triste de sol
a despedir-se agora,
infiltra-se por reflexos
como espelhos nesta sala.
E a tudo ilumina num repente
para em seguida
apenas a escuridão entrar.
Assim foi teu sorriso inteiro
num último olhar,
a prometer infinitas esperas
para depois mergulhar no caos.
Julho/1977
Sua ligação com espiritualidade:
O recomeço nos espera
para outro caminhar
cheio de trilhas escuras
e penhascos tortuosos.
Agora nós sabemos
preciso é caminharmos juntos.
Para juntos chegarmos
ao fim da escada.
Para juntos chegarmos
ao fim da estrada.
Preciso é chegarmos
enquanto existirem
flores nos campos
e frutos nas árvores.
Não mais como agora,
de mãos vazias,
de mãos sozinhas
chegamos apenas
ao encontro de árvores secas,
árvores crestadas,
árvores desgalhadas
em crestado e seco solo.
Vamos nos dar as mãos.
Caminharmos juntos é preciso.
1976
*
Passou horas a reler seus velhos poemas, seus velhos textos. Até sonhou com o livro em que eles estariam inseridos.
Acordou feliz. E passou a digitar todo o conteúdo há tanto tempo no fundo de um pequeno baú. De imediato surgem em sua mente os mais variados títulos do livro que publicaria.
O tempo lá fora não mudara. Continuava cinza. Mas sua alma sorria em um fantástico colorido.
