Sem carnaval, sem piscina, sem passeios, sem festas e sem sequer poder partilhar de alguns minutos com suas famílias
Carnaval. Domingo. Passear nos campos. Passear nas montanhas. Brincar nas corredeiras. Tarde ensolarada. Descanso do Baile de Máscaras.
Em alguma bela mansão da cidade encontrava-se um ilustre senhor com gosto de ressaca na boca, cabeça martelando memórias, procurando um canto ameno para sorver o seu uísque com gelo e ler o artigo que escrevera contra a famigerada classe de branco.
Político já muito badalado, com grande turba a rodeá-lo sempre, tinha um jornal à mão para escrever as críticas mais burguesas que a raia miúda aplaudiria. Não custou encontrar motivo nesse repouso remunerado de verão, repouso remunerado pelo povo, remunerado repouso que o Congresso lhe concedia.
Vendo que a cidade, o povo, a massa, vislumbravam já um hospital em soerguimento e que começava a brilhar, sentia, na consciência, o peso por nada ter feito a favor, por não ter dado a mão quando o grito de alerta havia já ecoado nos céus. E agora precisava lançar-se contra. Em busca das sobras para a sua glória. E as encontrou, justamente, naqueles sem os quais o hospital não vingaria…
Que quitute saboroso ! … E jogou, na primeira página do seu jornal, enegrecido pela linha que vinha adotando, um libelo contra os próprios amigos, contra os próprios correligionários. E estava feliz. Porque a massa o aplaudiria. Era disto que precisava. Chamar a atenção do povo contra a preguiça destes vagabundos de branco que só queriam aparecer engomadinhos, ditando ordens. Agora ele seria o paladino dessa população sofredora que via seus pobres e famintos filhos morrendo na porta do hospital, porque os médicos se omitiam no atendimento.
Outro uísque para curtir melhor a ressaca. Calor intenso. Seus filhos e sua mulher na piscina do clube. O ar condicionado irritando a sinusite, que não cessava de incomodar, aumentando sua dor de cabeça.
Impaciente aguardava os correligionários que logo viriam apertar-lhe a mão e felicitá-lo por ter abraçado a causa do povo oprimido, por ter levantado o cruciante problema que ceifava vidas de seus amados munícipes. E os companheiros na câmara municipal também levantariam a questão. E bebericava seu uísque com gelo sonhando com os votos futuros…
Enquanto isto, não muito distante dali, na colina do outro lado da cidade, uma jovem médica, de plantão no hospital, atendia, sem parar, desde o início da noite, feridos nas brigas do primeiro baile de carnaval… acidentados no caótico trânsito na balbúrdia da madrugada…
… atendia crianças desidratadas que o calor só fazia deixar em pior estado… que a desnutrição crônica não conseguia fazer com que tivessem forças para a luta que precisariam enfrentar…
… costurando coxas de beldades que se feriram nos cacos de garrafas jogadas nas piscinas…
Atendendo recém-nascidos que já chegavam ao mundo em péssimas condições de vida. Recém-nascidos de jovens-mães-meninas que entravam no hospital em convulsão extrema. Porque a ignorância delas no tocante ao seu corpo e à sua saúde, ignorância desconhecida nas altas esferas, não lhes trazia o conhecimento básico de que deveriam procurar um posto de saúde durante a gestação.
E, na sala de cirurgia, outros médicos a desdobrarem-se, sem carnaval, sem piscina, sem passeios, sem festas e sem sequer poder partilhar de alguns minutos com suas famílias.
Sem tampouco ter conseguido almoçar, a jovem médica estava a tomar, às pressas, um copo de suco de laranja, meio morno já, quando chega um novo apelo…
“Doutora… doutora… corre aqui que acaba de chegar agora um homem passando mal.”
Correndo ela foi atender. E quem lá se encontrava? O gordo político que, ao andar, deixava atrás de si um rasto marrom-amarelado a lhe escorrer pernas abaixo sob as bermudas frouxas. O gordo político que, sob dores lancinantes, encontrava-se em um lastimável, deprimente e humilhante estado.
As dores abdominais, as cólicas intestinais eram intensas e agora a sua humilhação atingia o máximo que poderia imaginar em sua vida ao precisar pedir socorro justamente para aqueles a quem a sua pena e a sua vaidade tanto haviam denegrido na primeira página do seu jornal.
Tinha que se expor ao maior ridículo, apelando pelo amor de Deus, um alívio para a sua dor e uma rolha para as suas impuras tripas que o obrigaram a correr como um menino só em busca de amparo.
E a jovem médica atendeu-o. Assim como aprendera a atender. Porque, para ela, como para todos os demais médicos, o artigo do jornal não seria uma barreira para que deixassem de continuar cumprindo a missão a que se propuseram. Fazia o seu sacerdócio e atendia, com a mesma paciência, até aqueles que atiravam lama em sua roupa branca e engomada, já nem tão branca e nem tão engomada pelo correr das horas em intenso e ininterrupto serviço.
Mas… alguém lá no Alto sorriu e mais força e coragem lhe deu para continuar aguentando as duras horas que a aguardavam trabalhando ainda, suando ainda, sofrendo ainda o sofrimento da outra, o sofrimento do outro, atendendo o povo, este mesmo povo que a malhava.
Continuaria trabalhando enquanto a população inteira dançava, cantava, bebia, pulava, passeava ou descansava nos braços cansados do amor…