A sensibilidade daquele homem, num gesto simples, presenteava-me com uma memória afetiva de infância
Rosane Godoi*
Era o ano de 1989, eu iniciava minha carreira de professora no Colégio Túlio de França antes mesmo da formatura. Minha professora de linguística e também colega Prof. Fahena Porto Horbatiuk entra empolgada na sala dos professores e vem me mostrar o livro de um jovem canoinhense “brilhante”, segundo ela, que acabara de ser premiado. O livro era Aniba e Outros Povos. Para linguistas como eu e ela, um tesouro que resgata todo um histórico do linguajar do nosso povo, um jeito de ver e viver o mundo a seu modo.
Mais tarde, enquanto redatora da Revista Regional Vale do Iguaçu, chamou-me a atenção as fotos de um certo fotógrafo canoinhense que mensalmente enviava fotos, notícias da sociedade canoinhense e poemas, belos e inspirados poemas. Era o que eu mais gostava pela sua fina pena. Nunca nos vimos pessoalmente, as matéria chegavam sempre pelo correio num recheado envelope A4 amarelo. E não é que o tal colunista era o “jovem brilhante” de que me falara a mestra Fahena? Virei fã daquele cara.
Em 1990 mudo-me para Canoinhas abrir a filial da escola de inglês de União da Vitória. Num final de tarde, adentra a secretaria um jovem procurando por aulas de espanhol. Após o cumprimento inicial nos apresentamos e nos reconhecemos.
– Eu sou o Fernando Tokarski e quero fazer espanhol.
– Fernando Tokarski, o fotógrafo??? Escritor???
– Sim.
– Eu sou a Rosane Godoi.
– Da Revista???
– Sim.
Devidamente apresentados e reconhecidos entabulamos uma conversa que durou sei lá quanto tempo, como velhos amigos, que há tempos não se encontravam, que nunca haviam se encontrado de fato. Resultado? Convenci-o a fazer inglês. Ele que tinha um certo ranço pelo Tio Sam. Que não gostava dessa coisa de “estadunidense”. Acabou fazendo um ano de inglês. Orgulho-me desse convencimento e durante muito tempo demos boas risadas fazendo troça a respeito.
Anos mais tarde, já com minha própria escola, recém-chegada de novo na cidade, sozinha, sem muitos contatos e com a sacola vazia, precisei de ajuda e foi Fernando quem generosamente me estendeu a mão.
Os anos se passaram e em 2006 eu trouxe o primeiro Curso de Ensino a Distância para Canoinhas e o primeiro curso era o de História. Quase fui apedrejada em praça pública. “Como pode faculdade sem professor??? É golpe.” Todo tipo de desinformação foi espalhado aos quatro ventos. Foi quando Fernando surgiu diante de mim na escola pedindo para matricular-se. Eu lhe disse:
– Fernando, você não precisa. Você é um mestre.
E ele me disse,
– Eu sei, mas eu quero!
Foi o aval que eu precisava para corroborar a seriedade de um trabalho. Ele me deu esse voto de confiança. Na aula inaugural colei na parede da sala um cartaz com a seguinte frase: “juntos faremos história”. Durante a graduação, ele já um historiador consagrado, escritor reconhecidamente da mais alta competência, foi um grande companheiro, um incentivador, um amigo, um aliado. Dali em diante nossos laços se estreitaram e nossa amizade se consolidou. Foram muitos aniversários, churrascos, comemorações, visitas. Por várias vezes, além de amigo, um conselheiro. Orador da turma, no dia da formatura disse: “Professora, aqueles que a criticaram por ser a precursora no Ensino a Distância, agora veem nele a salvação da sua lavoura pedagógica.”
Depois veio a pós-graduação e fomos colegas de turma. Nós dois, os garotos rebeldes a provocar os colegas lacradores. Instituímos o dia da consciência polaca. Criamos o nosso glossário de termos regionais como: “codaquear” (tirar fotos com a Kodak) … entre tantos outros.
– É, amigo, fizemos história!
Acabada a pós continuamos a nos encontrar por aí, na noite, nos eventos. Fernando não parava, inquieto, crescia como pesquisador, historiador, escritor. Um dia apareceu em meu escritório trazendo-me de presente O Tamboreiro de Pedras Brancas, premiado como melhor livro de contos pela Academia Catarinense de Letras, com uma bela dedicatória, devidamente autografado. Devorei-o num final de semana e o guardava na estante do meu escritório para de vez em quando reler alguma das suas memoráveis histórias. Escrita irretocável num português castiço.
Em 2014 fundamos a nossa Academia de Letras do Brasil/ Canoinhas (ALB). Fernando, que já era membro da Academia de Letras do Vale do Iguaçu (Alvi), ocupado com seus estudos, preferiu esperar para fazer parte da nossa ALB num segundo momento. Porém colocou-se como grande incentivador e colaborador, sendo autor do panegírico de Orty de Magalhães Machado, Patrono da ALB/ Canoinhas.
Lembro-me da noite de instalação da Academia quando, à porta do auditório da FAMEPLAN, lá estava ele, na sua inconfundível pelerine representando a Alvi. Deu-me um abraço carinhoso e eu lhe disse:
– Não me conformo por você não estar conosco.
– Não se preocupe. A hora certa virá. – respondeu ele.
E o tempo chegou. Em setembro de 2017 tive a honra de participar da sessão solene de posse de Fernando Tokarski na ALB/Canoinhas, nesta mesma Câmara de Vereadores. Então, deu-se uma sucessão de reuniões, sessões solenes, concursos, encontros no Casarão Domit….
Em 2019, no aniversário de cinco anos da ALB/Canoinhas, tivemos como nosso convidado de honra o grande escritor catarinense Dr. Enéas Athanázio. E quem melhor para fazer sua apresentação do que o amigo Fernando? Ninguém para conhecer tão bem a obra do Dr. Enéas do que ele, que o se dirigiu a ele como o Guimarães Rosa do Sul do Brasil. Fernando sabia reconhecer os grandes vultos da literatura catarinense, sendo ele mesmo um expoente.
Eu poderia aqui passar horas falando das suas qualidades como escritor, como historiador, como fotógrafo, pai, amigo, confrade, intelectual. Tudo isso seria redundância. A sua obra aí está, publicada, premiada, reconhecida. Imortal duas vezes. A família aí está para dar seu testemunho. Fernando foi plural e superlativo apesar da sua simplicidade, da sua humildade.
Eu quero falar de coisas que ninguém sabe. Certo dia Fernando, o fotógrafo, postou numa rede social uma foto das flores de um ingazeiro no seu quintal. Comentei que sempre tive curiosidade em conhecer. Meu pai falava muito nessa fruta que colhia na fazenda em Matos Costa. Por várias vezes adentrou as matas em busca de um fruto para me apresentar. Sempre sem sucesso. E aquela curiosidade cresceu junto comigo. Como seria o tal ingá? Que sabor teria?
Certa tarde, eis que surge na secretaria da faculdade meu amigo Fernando com um pacotinho na mão. Abraçou-me e recusou-se a sentar-se, pois estava com pressa. A sua inseparável Zeca o aguardava no carro do outro lado da rua. Iriam fotografar uns cemitérios no interior. Colocou o pacotinho entre minhas mãos dizendo ser um presente. Quando abri, vi uma baga que não entendi muito bem do que se tratava.
– Meu ingazeiro deu três frutos – disse Fernando – um eu trouxe para você! Estou indo. Tchau!!!! – deu-me um beijo no rosto e foi embora.
Fiquei paralisada, lágrimas escorriam incessantes pelo meu rosto. A sensibilidade daquele homem, num gesto simples, presenteava-me com uma memória afetiva de infância. Era como se abraçasse meu pai, que perdi aos 12 anos. Nenhum outro fruto jamais será tão doce.
– Obrigada, amigo Fernando. Você é eterno. Você é verdadeiramente imortal!
Já o vejo adentrando o portal do céu sendo recebido pelo nosso também imortal, Ederson Mota, que vem saudá-lo de braços abertos e sorriso largo, dizendo:
– Salve, Príncipe do Timbozinho!
E junto com ele nossos também imortais Francisco Péricles Pazda, Sinira Damaso Ribas, Nelson Sicuro, e o recém-chegado Prof. Paulo Horbatiuk, vindo recebê-lo para uma boa roda de prosa no céu.
Até um dia!
*Rosane Godoi é professora, membro da Academia de Letras do Brasil, seccional de Canoinhas