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Carta escrita para uma amiga em 1976

Imagem:Freepik

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Enquanto eu sonho, faço ordem em meu quarto de despejo

Amiga Athis

Às vezes eu sinto o vazio, a falta de uma longa conversa. Tento, então, ouvir o trinar dos passarinhos, o estridular dos grilos, o assobio noturno do assum preto e concentro-me para ouvir uma voz amiga, uma sonora voz que venha do espaço, de outras galáxias, talvez…

Certamente o meu esforço não é suficiente para chegar àquelas alturas. Mas certeza eu tenho de amigos que vagueiam a meu lado, embora não consiga vê-los. São eles que me impelem, ajudam-me, transferem os estímulos que necessito. Sei que não estou só.

São eles que me impulsionam, animam-me e doam-me esta força visível e perceptível a tantos que me rodeiam.

Ajudam-me a saber ouvir. E tento segui-los.

Sei que não será ainda nesta vida que alcançarei aquele nível tão aspirado. Muitas vidas ainda serão necessárias palmilhar. Mas chegarei lá. E enquanto espero continuarei sendo eu. Muitos poderão sentir-me diferente, mas eu sei que igual como antes continuo.

Sei que muito já foi superado. Algo estranho sucede-me, às vezes. Tenho a sensação de estar suspensa nas nuvens. Sinto-me bem. Tenho agora paz interior. Sei que fiz muita coisa boa para muitos. Antes eu ficava triste com a ingratidão. Hoje já a supero.

Sei como começou esta melhora toda em nosso hospital. Como continuou e chegou ao ponto em que está.

Olho para os leitos com seus lençóis branquinhos. Minha mãe comprou uma peça de cretone e a transformou nesta algidez que os nossos pacientes envolve.

Até as pessoas que não gostam de mim, indiretamente foram, pelo meu esforço, bem atendidas e sem sequelas ficaram.

Sei que a minha mão estava em toda a parte. Até nos recém-natos que eu nem vi nascer.

Fico com tudo isto apenas para mim. Até o instante em que estou escrevendo para ti.

Mas agora que estás lendo, e sabendo, continuarás deixando em segredo.

Eu quero ter a alegria interior de tentar fazer as coisas bem feitas, na medida das minhas possibilidades, do meu conhecimento e do meu bem-estar interior, nem que seja só para mim mesma.

Eu gostaria de que tudo que estou pensando e escrevendo agora fosse o meu quotidiano. Para melhor. Mas sei que um torno me envolve e acomoda-me.

Com tudo o que escrevi não penses que eu esteja colocando-me acima do mundo. Não. Eu estou bem dentro dele, com todas as suas limitações, com as minhas limitações. Com meus sonhos materiais.

Ainda sonho em ter um carrinho-esporte com um supersom. Uma imitação nacional de um Jaguar. Ainda sonho com uma especial aparelhagem de som. Sonho com uma bela casa que tenha até piscina aquecida, claro. Sonho passear pelo mundo inteiro. Sonho vestir-me em Paris com Chanel ou Dior. Cortar o cabelo apenas com o Renaud do Copacabana Palace, no Rio. Sonho passar uma temporada em um fantástico hotel à beira-mar. Bronzear-me ao sol em suas praias e piscinas. Quanta coisa mais eu sonho.

E enquanto eu sonho, faço ordem em meu quarto de despejo. Que foi no que o meu se transformou. Vejo televisão colorida (que a pouco chegou para cá) com minha mãe. Quero passar todas as horas possíveis, das horas que lhe restam, a seu lado. Faço o meu trabalho, faço as minhas anestesias, atendo o mundo e, no tempo que me resta, ao lado dela eu fico.

E sonho com todas as coisas boas que tive na vida. E tento apagar as asperezas que encontrei pelos caminhos.

Tento ficar surda às palavras amargas que ouço e esquecer as que ouvido eu tenha. E à ausência de palavras que, talvez, mais mágoas ocasionado tivessem.

Por tudo isto, espero que tentes compreender que eu não mudei. É que o meu mundo não se resume apenas ao hospital. Mas foi através dele que eu expandi os meus tentáculos, tentando envolver o mundo. Com amor.

Eu não mudei. Consegui ultrapassar a barreira da estafa, do ódio, da inveja. Eu sorrio, sim. Embora não fique a gargalhar. Eu converso com meus amigos terrenos. Acho que, às vezes, eles captam meus pensamentos. Eu converso com meus amigos do espaço. Embora eu não os ouça.

Eu não mudei. O mundo mudou tanto e tudo mudou.

Se mudei, foi para ser mais amiga. Mais amiga do mundo. Não quero dizer que esta mudança tenha sido para melhor. Mas eu me sinto bem. Eu escreveria hoje, agora, aqui, centenas de páginas, tentando isto explicar. Então fica para não sei quando… um dia, uma noite, em outra vida, em outro mundo, em alguma estrela, talvez….

Até, como sempre…

                                               Ariadne